segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

O Ensino Religioso nas Escolas
Nara Nascimento

Quando pensamos no ensino religioso nas escolas, culturalmente, para maioria das pessoas o primeiro pensamento que vem é "isso é muito bom". Não vou aqui questionar a importância do ensino religioso na formação do carater das pessoas, como muitos costumam colocar, vou inclusive mais além, a disciplina de ensino religioso, cujo o título correto deveria ser religiões, como instrumento de respeito a diversidade e de cultura da paz.
Religiões é a disciplina que falará das centenas e milhares de religiões e seitas existentes no mundo, suas raízes, diferenciações, ramos. Falará sobre a cultura e forma de expressão das crenças dos diversos povos existentes no planeta, das religiões orientais e ocidentais.
Preocupa-me quando falamos ensino religioso, porque em sendo o Estado laico a ele não cabe "ensinar religião", ensinar a crença em determinada religião é uma atribuição familiar. Vem da familia nossas crenças, nossa religião, que podem ou não se modificar com o passar do tempo, de acordo com as vivências do individuo.
Quando essa proposta vem de uma aliança estabelecida entre o Estado Brasileiro e o Vaticano, por mais que digam que não, é minimamente tendenciosa.
Na infancia, tive ensino religioso na escola. Escola pública na qual fiz todo o primário. Lembro-me que havia uma colega que por solicitação familiar foi dispensada das aulas de ensino religioso, porque era luterana. As aulas eram basicamente de ensino católico. Não foi nessas aulas que ouvi sobre Buda, Oxala, Maomé... sobre a diversidade religiosa. Hoje minhas crianças estudam num colégio salesiano e também tem aula de ensino religioso, e também aprendem o catolicismo. Não discutem e não aprendem nenhuma outra religião. Não aprendem a diversidade. Tenho claro que não é porque estão numa escola salesiana, que deve ser falado apenas da religião católica, pois é sobretudo uma instituição de ensino, e educação é dever do Estado, neste caso foi feita uma conseção, mas continua cabendo ao Estado o estabelecimento e avaliação do conteúdo a ser ensinado.
Vivemos num mundo no qual a religião tem sido causa de desrepeito, de guerras, da violação dos direitos humanos. Temos caminhado, ainda, que lentamente, para a superação da intolerância religiosa. Me preocupa a introdução do ensino religioso nas escolas da forma como historicamente vem ocorrendo. A mudança do nome da disciplina, a construção do seu conteúdo com a participação das diversas religiões e seitas, é um passo significativo para a construção de um instrumento de respeito a diversidade, de busca da superação das desigualdades, de construção de um Estado democrático.

Homofobia, Estado Brasileiro e o Vaticano

Cada dia mais temos que pensar que sociedade queremos e sobretudo o que estamos fazendo para construi-la ou descontrui-la

Artigo publicado no site Judiciário e Sociedade


A Lula o que é de Lula
Roberto Arriada Lorea *
Na República Islâmica do Irã a homossexualidade é punida com a pena de morte. Em 2005, uma fotografia mostrando a execução de dois garotos foi divulgada para o mundo através da internet. A imagem retrata dois meninos vistos de frente. Têm corpo franzino, vestem camisas de manga curta. Estão lado a lado, com os olhos vendados e cabeças voltadas para baixo, seus braços pendem para trás do corpo, escondendo suas mãos amarradas. Do alto pendem duas cordas que estão presas ao pescoço de cada um deles. Atrás, estão postados dois carrascos encapuzados, um deles segura firme o braço de um dos executados. São dois garotos condenados à morte pelo "crime" de incorrer em práticas homossexuais. A imagem é inesquecível pois impõe a reflexão de que aqueles dois garotos (pouco mais que duas crianças) que ali aparecem ainda vivos, em poucos instantes estarão mortos, sacrificados para satisfazer o fundamentalismo homofóbico implementado por um Estado confessional.
A comunidade internacional está mobilizada para estancar essa barbárie. Para tanto, nos próximos dias a França irá propor que a Organização das Nações Unidas (ONU) aprove uma Resolução no sentido de que os Estados adotem as medidas necessárias, em particular as legislativas ou administrativas, para assegurar que a orientação sexual ou identidade de gênero não possam ser, sob nenhuma circunstância, a base para sanções penais, especialmente execuções e prisões. A iniciativa conta com expressiva adesão de cinquenta países, incluindo todos os Estados que compõem a União Européia.
Contudo, supreendem-se as sociedades democráticas com a postura do Vaticano, cujo observador permanente na ONU, arcebispo Celestino Migliore, anunciou a decisão de se opor à Resolução proposta pela França. Segundo a imprensa, a posição da Santa-Sé está baseada no argumento de que a Resolução iria "acrescentar novas categorias àquelas protegidas da discriminação" e poderia levar à discriminação contra o casamento tradicional heterossexual (Reuters). O raciocínio apresentado pela Santa-Sé é definido em editorial do jornal italiano La Stampa como "grotesco". Ao não apoiar a Resolução, cujo objetivo primordial é salvar a vida de milhares de pessoas que vivem sob opressão fundamentalista, a Santa-Sé omite-se em atender ao chamado da comunidade internacional para enfrentar (à luz da razão) práticas penais violadoras de princípios básicos de Direitos Humanos - cujo nascedouro, recorde-se, remete a outra injustificável omissão da Igreja Católica.
Considerando-se a postura homofóbica do Vaticano, a qual não exclui sequer a criminalização da homossexualidade com a pena de morte, e sabendo-se que o prefeito da Congregação para a Educação Católica, Cardeal Zenon Grocholewski, afirma que a homossexualidade é "um desvio, uma irregularidade e uma ferida" (Reuters), torna-se relevante mencionar que o Governo Federal lançou em 2004 o Programa Brasil sem Homofobia, definido como "Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT e de Promoção da Cidadania Homossexual". São duas visões de mundo (e dois conteúdos pedagógicos) incompatíveis, cujo confronto impõe que a sociedade brasileira se questione sobre quais ensinamentos transmitir às futuras gerações: valores democráticos ou fundamentalismos homofóbicos.
O questionamento torna-se urgente, na medida em que o Presidente Lula (violando o artigo 19, I, da Constituição) firmou uma aliança com a Santa-Sé, estabelecendo a obrigatoriedade (dita facultativa) do ensino católico na escola pública brasileira. O acordo Lula/Ratzinger não teve qualquer participação da sociedade e deverá ser submetido ao Congresso Nacional. O que precisa ser debatido pela sociedade brasileira, porque será definido pelos membros do Congresso Nacional, é se nossa escola pública deve formar cidadãos capazes de valorizar a dignidade da pessoa humana, independentemente da orientação sexual ou, como propõe o Presidente Lula, desejamos formar cidadãos que reverenciem o fundamentalismo homofóbico pregado pela Santa-Sé.
* Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da Red Iberoamericana por las Libertades Laicas. Membro do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR).

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

COTAS

Teses e truques

Míriam Leitão

Em vez de discutir cota, é melhor investir na educação. Não se deve adotar um sistema que separa por raça, pois isso criará racismo. Não se pode ferir o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei. Nunca pode ser revogado o princípio do mérito acadêmico. Os argumentos se repetem e parecem ótimos. Escondem a mesma resistência ao tema racial que temos mantido desde a abolição e as conclusões estão truncadas.
Nunca, os que defendem cotas raciais na universidade propuseram a escolha entre cotas e qualidade da educação. Não há essa dicotomia. É uma falsidade para truncar o debate. É fundamental melhorar a educação em todos os níveis. As cotas raciais não revogam essa idéia.
O princípio da igualdade perante a lei é a pedra que sustenta as sociedades democráticas e modernas. As ações afirmativas não vão revogá-lo. A igualdade perante a lei sempre conviveu com o tratamento diferente aos desiguais. Na área tributária, a regressividade, por exemplo: a alíquota para os mais ricos é maior. As transferências de renda são para quem tem renda abaixo das linhas de pobreza e miséria. Mulheres estão sub-representadas na política e, para tentar vencer isso, há a cota de 30% nas candidaturas. No comércio internacional, existe o princípio do tratamento diferenciado para os países mais pobres. Há muito tempo, o Direito convive com os dois princípios, como complemento um do outro. Um garante o outro. Tratar da mesma forma os desiguais acentua a desigualdade. O princípio da igualdade perante a lei é apresentado na discussão como um truque. Não há conflito entre ele e o outro princípio civilizatório do tratamento diferenciado aos desiguais. Quem quer defender o princípio da igualdade perante a lei deveria fazer um manifesto contra, por exemplo, a aberração de prisão especial para criminosos com curso superior.
O mérito acadêmico tem que ser preservado na formação universitária. Ele não está sob ameaça com medidas para aumentar o ingresso de negros na universidade. As avaliações de desempenho de diversas universidades mostram que não há esse risco. Os adversários das cotas rejeitam as avaliações dizendo que ainda não foi feito um estudo consistente. O mesmo argumento invalida seus próprios argumentos de que a qualidade da universidade estará em risco com as cotas. A universidade americana, que nunca abriu mão do mérito acadêmico, dá pontuação diferenciada por razões raciais, sociais e até aos esportistas no ingresso nas escolas.
Não podem ser adotadas políticas que incentivem o racismo. Quem discordaria disso? Esse argumento usado contra as cotas é um dos mais perversos truques. As políticas de ação afirmativa não vão criar o racismo. Não se cria o que já existe. O Brasil tem um fosso enorme, resistente, entre brancos e negros e é esse fosso que se pretende vencer. Sem o incentivo à mobilidade, o Brasil carregará para sempre as marcas da escravidão. Ela tem se eternizado por falta de debate e de políticas dedicadas a superar o problema.
Empresas internacionais adotam há tempos metas para aumentar a diversidade de seus funcionários, executivos e gerentes. É um objetivo desejável no mundo multiétnico e que se quer menos racista e menos injusto. Órgãos públicos americanos usam nas suas contratações mecanismos para aumentar a representatividade das várias partes da sociedade. Governos diversos usam incentivos para determinadas políticas como parte dos seus critérios de seleção de fornecedores nas compras governamentais. Nada há de errado e novo nessas políticas. O que há é que, pela primeira vez, fala-se em usar esses mecanismos para promover a ascensão dos negros no Brasil. O país tem um horror atávico a discutir o tema. Já se escondeu atrás de inúmeros sofismas. Acreditava estar numa bolha não racial, um país diferente, justo por natureza.
Não existe raça. É fato. Biológica e geneticamente não existe, como ficou provado em estudos recentes. Isso é mais um argumento a favor das políticas anti-racistas e não o contrário. Os avanços acadêmicos na área só servem para mostrar que os negros são mais pobres, têm piores empregos, ganham menos, não por qualquer incapacidade congênita, mas por falha da sociedade em construir oportunidades iguais. Isso se corrige com políticas públicas, iniciativas privadas, para desmontar as barreiras artificiais ao acesso dos negros à elite.
O debate é livre e benéfico. O problema não é o debate, mas alguns dos argumentos. E pior: os truques. Acusar de promover o racismo o primeiro esforço anti-racista após 118 anos do fim da escravidão é uma distorção inaceitável.
Quem gosta do Brasil assim deve ter a coragem de dizer isso. Quem não acha estranho, nem desconfortável, entrar nos restaurantes e só ver brancos, ver na direção das empresas apenas brancos, conviver com uma elite tão monocromática, tudo bem. Deve simplesmente dizer que prefere conservar o Brasil como ele é, com os brancos e negros mantidos assim: nesta imensa distância social.

COTAS

AS COTAS PARA NEGROS: POR QUE MUDEI DE OPINIÃO.

William Douglas, juiz federal (RJ), mestre em Direito (UGF),
especialista em Políticas Públicas e Governo (EPPG/UFRJ), professor
e escritor, caucasiano e de olhos azuis.

Roberto Lyra, Promotor de Justiça, um dos autores do Código Penal de 1940, ao lado de Alcântara Machado e Nelson Hungria, recomendava aos colegas de Ministério Público que "antes de se pedir a prisão de alguém deveria se passar um dia na cadeia". Gênio, visionário e à frente de seu tempo, Lyra informava que apenas a experiência viva permite compreender bem uma situação.
Quem procurar meus artigos, verá que no início era contra as cotas para negros, defendendo – com boas razões, eu creio – que seria mais razoável e menos complicado reservá-las apenas para os oriundos de escolas públicas. Escrevo hoje para dizer que não penso mais assim. As cotas para negros também devem existir. E digo mais: a urgência de sua consolidação e aperfeiçoamento é extraordinária.
Embora juiz federal, não me valerei de argumentos jurídicos. A Constituição da República é pródiga em planos de igualdade, de correção de injustiças, de construção de uma sociedade mais justa. Quem quiser, nela encontrará todos os fundamentos que precisa. A Constituição de 1988 pode ser usada como se queira, mas me parece evidente que a sua intenção é, de fato, tornar esse país melhor e mais decente. Desde sempre as leis reservaram privilégios para os abastados, não sendo de se exasperarem as classes dominantes se, umas poucas vezes ao menos, sesmarias, capitanias hereditárias, cartórios e financiamentos se dirigirem aos mais necessitados.
Não me valerei de argumentos técnicos nem jurídicos dado que ambos os lados os têm em boa monta, e o valor pessoal e a competência dos contendores desse assunto comprovam que há gente de bem, capaz, bem intencionada, honesta e com bons fundamentos dos dois lados da cerca: os que querem as cotas para negros, e os que a rejeitam, todos com bons argumentos.
Por isso, em texto simples, quero deixar clara minha posição como homem, cristão, cidadão, juiz, professor, "guru dos concursos" e qualquer outro adjetivo a que me proponha: as cotas para negros devem ser mantidas e aperfeiçoadas. E meu melhor argumento para isso é o aquele que me convenceu a trocar de lado: "passar um dia na cadeia". Professor de técnicas de estudo, há nove anos venho fazendo palestras gratuitas sobre como passar no vestibular para a EDUCAFRO, pré-vestibular para negros e carentes.
Mesmo sendo, por ideologia, contra um pré-vestibular "para negros", aceitei convite para aulas como voluntário naquela ONG por entender que isso seria uma contribuição que poderia ajudar, ou seja, aulas, doação de livros, incentivo. Sempre foi complicado chegar lá e dizer minha antiga opinião contra cotas para negros, mas fazia minha parte com as aulas e livros. E nessa convivência fui descobrindo que se ser pobre é um problema, ser pobre e negro é um problema maior ainda.
Meu pai foi lavrador até seus 19 anos, minha mãe operária de "chão de fábrica", fui pobre quando menino, remediado quando adolescente. Nada foi fácil, e não cheguei a juiz federal, a 350.000 livros vendidos e a fazer palestras para mais de 750.000 pessoas por um caminho curto, nem fácil. Sei o que é não ter dinheiro, nem portas, nem espaço. Mas tive heróis que me abriram a picada nesse matagal onde passei. E conheço outros heróis, negros, que chegaram longe, como Benedito Gonçalves, Ministro do STJ, Angelina Siqueira, juíza federal. Conheço vários heróis, negros, do Supremo à portaria de meu prédio.
Apenas não acho que temos que exigir heroísmo de cada menino pobre e negro desse país. Minha filha, loura e de olhos claros, estuda há três anos num colégio onde não há um aluno negro sequer, onde há brinquedos, professores bem remunerados, aulas de tudo; sua similar negra, filha de minha empregada, e com a mesma idade, entrou na escola esse ano, escola sem professores, sem carteiras, com banheiro quebrado. Minha filha tem psicóloga para ajudar a lidar com a separação dos pais, foi à Disney, tem aulas de Ballet. A outra, nada, tem um quintal de barro, viagens mais curtas. A filha da empregada, que ajudo quanto posso, visitou minha casa e saiu com o sonho de ter seu próprio quarto, coisa que lhe passou na cabeça quando viu o quarto de minha filha, lindo, decorado, com armário inundado de roupas de princesa. Toda menina é uma princesa, mas há poucas das princesas negras com vestidos compatíveis, e armários, e escolas compatíveis, nesse país imenso. A princesa negra disse para sua mãe que iria orar para Deus pedindo um quarto só para ela, e eu me incomodei por lembrar que Deus ainda insiste em que usemos nossas mãos humanas para fazer Sua Justiça. Sei que Deus espera que eu, seu filho, ajude nesse assunto. E se não cresse em Deus como creio, saberia que com ou sem um ser divino nessa história, esse assunto não está bem resolvido. O assunto demanda de todos nós uma posição consistente, uma que não se prenda apenas à teorias e comece a resolver logo os fatos do cotidiano: faltam quartos e escolas boas para as princesas negras, e também para os príncipes dessa cor de pele.
Não que tenha nada contra o bem estar da minha menina: os avós e os pais dela deram (e dão) muito duro para ela ter isso. Apenas não acho justo nem honesto que lá na frente, daqui a uma década de desigualdade, ambas sejam exigidas da mesma forma. Eu direi para minha filha que a sua similar mais pobre deve ter alguma contrapartida para entrar na faculdade. Não seria igualdade nem honesto tratar as duas da mesma forma só ao completarem quinze anos, mas sim uma desmesurada e cruel maldade, para não escolher palavras mais adequadas.
Não se diga que possamos deixar isso para ser resolvido só no ensino fundamental e médio. É quase como não fazer nada e dizer que tudo se resolverá um dia, aos poucos. Já estamos com duzentos anos de espera por dias mais igualitários. Os pobres sempre foram tratados à margem. O caso é urgente: vamos enfrentar o problema no ensino fundamental, médio, cotas, universidade, distribuição de renda, tributação mais justa e assim por diante. Não podemos adiar nada, nem aguardar nem um pouco.
Foi vendo meninos e meninas negros, e negros e pobres, tentando uma chance, sofrendo, brilhando nos olhos uma esperança incômoda diante de tantas agruras, que fui mudando minha opinião. Não foram argumentos jurídicos, embora eu os conheça, foi passar não um, mas vários "dias na cadeia". Na cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus pais, de um lugar que experimentei um pouco só quando mais moço. De onde eles vêm, as cotas fazem todo sentido.
Se alguém discorda das cotas, me perdoe, mas não devem faze-lo olhando os livros e teses, ou seus temores. Livros, teses, doutrinas e leis servem a qualquer coisa, até ao nazismo. Temores apenas toldam a visão serena. Para quem é contra, com respeito, recomendo um dia "na cadeia". Um dia de palestra para quatro mil pobres, brancos e negros, onde se vê a esperança tomar forma e precisar de ajuda. Convido todos que são contra as cotas a passar conosco, brancos e negros, uma tarde num cursinho pré-vestibular para quem não tem pão, passagem, escola, psicólogo, cursinho de inglês, ballet, nem coisa parecida, inclusive professores de todas as matérias no ensino médio.
Se você é contra as cotas para negros, eu o respeito. Aliás, também fui contra por muito tempo. Mas peço uma reflexão nessa semana: na escola, no bairro, no restaurante, nos lugares que freqüenta, repare quantos negros existem ao seu lado, em condições de igualdade (não vale porteiro, motorista, servente ou coisa parecida). Se há poucos negros ao seu redor, me perdoe, mas você precisa "passar um dia na cadeia" antes de firmar uma posição coerente não com as teorias (elas servem pra tudo), mas com a realidade desse país. Com nossa realidade urgente. Nada me convenceu, amigos, senão a realidade, senão os meninos e meninas querendo estudar ao invés de qualquer outra coisa, querendo vencer, querendo uma chance.
Ah, sim, "os negros vão atrapalhar a universidade, baixar seu nível", conheço esse argumento e ele sempre me preocupou, confesso. Mas os cotistas já mostraram que sua média de notas é maior, e menor a média de faltas do que as de quem nunca precisou das cotas. Curiosamente, negros ricos e não cotistas faltam mais às aulas do que negros pobres que precisaram das cotas. A explicação é simples: apesar de tudo a menos por tanto tempo, e talvez por isso, eles se agarram com tanta fé e garra ao pouco que lhe dão, que suas notas são melhores do que a média de quem não teve tanta dificuldade para pavimentar seu chão. Somos todos humanos, e todos frágeis e toscos: apenas precisamos dar chance para todos.
Precisamos confirmar as cotas para negros e para os oriundos da escola pública. Temos que podemos considerar não apenas os deficientes físicos (o que todo mundo aceita), mas também os econômicos, e dar a eles uma oportunidade de igualdade, uma contrapartida para caminharem com seus co-irmãos de raça (humana) e seus concidadãos, de um país que se quer solidário, igualitário, plural e democrático. Não podemos ter tanta paciência para resolver a discriminação racial que existe na prática: vamos dar saltos ao invés de rastejar em direção a políticas afirmativas de uma nova realidade.
Se você não concorda, respeito, mas só se você passar um dia conosco "na cadeia". Vendo e sentindo o que você verá e sentirá naquele meio, ou você sairá concordando conosco, ou ao menos sem tanta convicção contra o que estamos querendo: igualdade de oportunidades, ou ao menos uma chance. Não para minha filha, ou a sua, elas não precisarão ser heroínas e nós já conseguimos para elas uma estrada. Queremos um caminho para passar quem não está tendo chance alguma, ao menos chance honesta. Daqui a alguns poucos anos, se vierem as cotas, a realidade será outra. Uma melhor. E queremos você conosco nessa história.
Não creio que esse mundo seja seguro para minha filha, que tem tudo, se ele não for ao menos um pouco mais justo para com os filhos dos outros, que talvez não tenham tido minha sorte. Talvez seus filhos tenham tudo, mas tudo não basta se os filhos dos outros não tiverem alguma coisa. Seja como for, por ideal, egoísmo (de proteger o mundo onde vão morar nossos filhos), ou por passar alguns dias por ano "na cadeia" com meninos pobres, negros, amarelos, pardos, brancos, é que aposto meus olhos azuis dizendo que precisamos das cotas, agora.
E, claro, financiar os meninos pobres, negros, pardos, amarelos e brancos, para que estudem e pelo conhecimento mudem sua história, e a do nosso país comum pois, afinal de contas, moraremos todos naquilo que estamos construindo.
Então, como diria Roberto Lyra, em uma de suas falas, "O sol nascerá para todos. Todos dirão – nós – e não – eu. E amarão ao próximo por amor próprio. Cada um repetirá: possuo o que dei. Curvemo-nos ante a aurora da verdade dita pela beleza, da justiça expressa pelo amor."
Justiça expressa pelo amor e pela experiência, não pelas teses. As cotas são justas, honestas, solidárias, necessárias. E, mais que tudo, urgentes. Ou fique a favor, ou pelo menos visite a cadeia.